A Morte do Rio
Por Achel Tinoco
Como em todo lugar, na Tesouras tinha um rio que se chamava Formiga. Mas por que Formiga? Certo coronel bolinava uma mocinha na margem do rio, quando uma formiga cabeçuda ferroou-lhe o saco velho, provocando tanta dor e falatório que o rio passou a ser conhecido como o Rio da Formiga.
Como eu ia dizendo, o rio era forte, caudaloso, bonito. Nele, podia-se pescar cambute, xixiu, traíra, piau. Nele, podia-se beber as águas na concha das mãos, que não fazia mal. O rio era um patrimônio, um bem, um rio. Sim, o rio era apenas o rio, que se o deixássemos lá, estaria lá até hoje a correr plenamente na direção do mar, sem que ninguém o tocasse, mas usufruíssemos dele... Foi então que chegou o homem, como chega a todo lugar, e achou que o rio era sua lata de lixo, embora o defenda com unhas, menos com os dentes, porque já não tem coragem de enfiar a boca nas suas correntezas. Não há mais correntezas. As águas as levaram para o mar e nunca mais as trouxeram de volta. Ficou um fio de esperança... O rio foi perdendo o viço, a cor, a força. Quando se arrisca a passar, passa definitivamente, vai se desfiando. Ninguém mais se afoga dentro dele, tão somente a lembrança distante de Arlindo sendo levado pelas águas, bêbado. Resta a formiga teimosa cortando o que lhe resta de folhas secas que o vento traz de algum lugar e despeja nas suas margens assoreadas. As autoridades fingem que cuidam do rio, embora não precisem dele, talvez de uns votinhos que ele possa lhes proporcionar na próxima eleição; a população cobra o conserto de um braço que ela própria quebrou, embora não o leve muito a sério. Encane-o. Já passou a tempestade. Ninguém tem pena do rio, continua a despejar dentro dele toda a miséria, calúnia, difamação. O rio aceita, porque é de sua natureza aceitar, mas já não corre, não navega, não vai ao mar. Fica ali na beirada da rua: uma ilha plastificada de imundice, chorume, papelão.
Então, para melhorar a situação do rio, unimo-nos todos e vamos mudar o nome da cidade. Chamar-se-á agora Ibirataia, o que quer dizer, na língua dos índios que o protegiam, pau que arde na beira do rio. Mas talvez fosse mais produtivo mudar o nome do rio, e não o da cidade, alguém de bom alvitre há de sugerir, para fingirmos que por lá passa outro rio, que não este que vimos descrevendo, e que se chama Formiga, o Morto. Deixemo-lo com a mesma alcunha por uma questão de homenageá-lo, como fizemos com aquele pau desfolhado que se quedou em suas beiradas e deu nome a esta cidade, que diz gostar do rio, e até protegê-lo, no entanto faz a sentinela deste moribundo há anos, sem nada fazer para salvá-lo da morte. Morto está. Enterremo-lo, pois. Mas alguém aí sabe como se enterra um rio?
Ora, demos ao mesmo o nome de Francisco — morto;
Rio das contas — morto;
Rio sapucaia — morto;
Rio do jandaia — morto;
Rio da água branca — morto;
Rio do Oricó — morto;
Rio da Formiga — morto.
E sem o rio, a cidade está morta.
Estamos todos mortos.
Amém.
Por Achel Tinoco
Como em todo lugar, na Tesouras tinha um rio que se chamava Formiga. Mas por que Formiga? Certo coronel bolinava uma mocinha na margem do rio, quando uma formiga cabeçuda ferroou-lhe o saco velho, provocando tanta dor e falatório que o rio passou a ser conhecido como o Rio da Formiga.
Como eu ia dizendo, o rio era forte, caudaloso, bonito. Nele, podia-se pescar cambute, xixiu, traíra, piau. Nele, podia-se beber as águas na concha das mãos, que não fazia mal. O rio era um patrimônio, um bem, um rio. Sim, o rio era apenas o rio, que se o deixássemos lá, estaria lá até hoje a correr plenamente na direção do mar, sem que ninguém o tocasse, mas usufruíssemos dele... Foi então que chegou o homem, como chega a todo lugar, e achou que o rio era sua lata de lixo, embora o defenda com unhas, menos com os dentes, porque já não tem coragem de enfiar a boca nas suas correntezas. Não há mais correntezas. As águas as levaram para o mar e nunca mais as trouxeram de volta. Ficou um fio de esperança... O rio foi perdendo o viço, a cor, a força. Quando se arrisca a passar, passa definitivamente, vai se desfiando. Ninguém mais se afoga dentro dele, tão somente a lembrança distante de Arlindo sendo levado pelas águas, bêbado. Resta a formiga teimosa cortando o que lhe resta de folhas secas que o vento traz de algum lugar e despeja nas suas margens assoreadas. As autoridades fingem que cuidam do rio, embora não precisem dele, talvez de uns votinhos que ele possa lhes proporcionar na próxima eleição; a população cobra o conserto de um braço que ela própria quebrou, embora não o leve muito a sério. Encane-o. Já passou a tempestade. Ninguém tem pena do rio, continua a despejar dentro dele toda a miséria, calúnia, difamação. O rio aceita, porque é de sua natureza aceitar, mas já não corre, não navega, não vai ao mar. Fica ali na beirada da rua: uma ilha plastificada de imundice, chorume, papelão.
Então, para melhorar a situação do rio, unimo-nos todos e vamos mudar o nome da cidade. Chamar-se-á agora Ibirataia, o que quer dizer, na língua dos índios que o protegiam, pau que arde na beira do rio. Mas talvez fosse mais produtivo mudar o nome do rio, e não o da cidade, alguém de bom alvitre há de sugerir, para fingirmos que por lá passa outro rio, que não este que vimos descrevendo, e que se chama Formiga, o Morto. Deixemo-lo com a mesma alcunha por uma questão de homenageá-lo, como fizemos com aquele pau desfolhado que se quedou em suas beiradas e deu nome a esta cidade, que diz gostar do rio, e até protegê-lo, no entanto faz a sentinela deste moribundo há anos, sem nada fazer para salvá-lo da morte. Morto está. Enterremo-lo, pois. Mas alguém aí sabe como se enterra um rio?
Ora, demos ao mesmo o nome de Francisco — morto;
Rio das contas — morto;
Rio sapucaia — morto;
Rio do jandaia — morto;
Rio da água branca — morto;
Rio do Oricó — morto;
Rio da Formiga — morto.
E sem o rio, a cidade está morta.
Estamos todos mortos.
Amém.
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