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Três Ruas

 

Escritor Achel Tinôco 


Havia, em qualquer lugar, uma cidadezinha chamada Três Ruas. Deram-lhe esse nome exatamente porque só havia nela a Rua do Estádio, a Rua do Hospital e a Rua do Cemitério. 

 Bizuca morava na Rua do Estádio. Tinha sete anos e não pensava noutra coisa senão jogar bola. À frente de sua casa estava o estádio municipal, inaugurado recentemente. Corria pelas outras ruas da cidade, duas, que a obra custara os olhos da cara ao município. A inauguração foi um acontecimento portentoso. Veio gente de toda parte e de toda redondeza. Não conseguiu lotá-lo; precisava de mais dez mil pessoas e nas redondezas não havia tanto torcedor. No entanto, o prefeito fez um discurso inflamado: disse a quem o escutava que aquela era uma obra indispensável à população. Com ela, Três Ruas estava inscrita na rota do desenvolvimento esportivo. 

 “Viva o prefeito!”

 Alguém gritou das arquibancadas:

 — Seu prefeito, Três Ruas não tem nem time!

 Ele não se alterou e disse:

 — Não tem problema, caro eleitor, eu mando trazer de fora.

 Dona Generosa Flores repetia ao filho que não se pode ser um bom jogador se não se dedicar também aos estudos. Aliás, para ela, coberta de razão, para tudo na vida é preciso ter estudo e conhecimento. 

— Quero lhe dar, meu filho, o que eu não pude ter — dizia. 

Criava-o com dificuldade, desde o dia em que o marido foi-se embora sem olhar para trás. Era auxiliar de enfermagem, mas havia dois meses e meio não recebia salário. 

Ah, Bizuca não se conformava. Pela manhã, cedinho, saía para a escola resmungando. Onde já se viu, pensava ele, precisar andar tanto para se ter com uma professora que dizia as mesmas coisas que a sua mãe já lhe dizia: livros, livros, livros? Não suportava a palhetada de seis quilômetros, todo dia, sob sol e chuva, para chegar à escola da cidade vizinha. Em Três Ruas não tinha escola. Tinha o estádio, como já informamos, mas, nas dependências do estádio, não podia haver outra atividade que não o futebol. O prefeito não abria mão. Dona Generosa não abria mão de educar o filho.  

 O menino entendia que, se na sua cidade não tinha escola, mas tinha estádio, é porque o futebol era muito mais importante do que o estudo; portanto, o estádio era mais importante do que a escola. No entanto, ainda se questionava: se o estádio era assim tão importante, por que ele não podia jogar lá dentro? Continuava a jogar seus babas, com os moleques da rua, no meio da rua, à frente do portão do estádio Visgueirão, nome em homenagem ao prefeito, Visgueira. José Visgueira. 

 — Meu filho — dizia Dona Generosa —, depois que você aprender a ler e a escrever corretamente, você pode conquistar o mundo.

 O menino respondia enfezado:

 — Não quero conquistar o mundo, mãe. Quero apenas jogar bola.

 — Jogar bola é também conquistar o mundo, meu filho.

 — O prefeito não estudou e é prefeito. Ele também conquistou o mundo?

 — A família do prefeito é rica, com isso ele conquistou o povo. Pelo menos, a parte do povo que não estudou.

— Perna de Pau não estudou e foi jogador famoso.

 — Você sabe por que o nome dele é Perna de Pau?

 Bizuca negou com um menear discreto da cabeça. Dona Generosa contou-lhe: Jereba de Zé Rufino era um rapaz como outro qualquer de Três Ruas. Não quis estudar e não pensava noutro futuro que não estivesse atrelado à bola, com a diferença de que não suportava mais a vida pacata da cidadezinha, enquanto que os outros se conformavam com o que Deus lhes tinha dado, mesmo que fosse nada. Depois de acompanhar o enterro do pai, no cemitério do município, na Rua do Cemitério, resolveu, por contra própria, ir tentar a vida na capital. Ia ser jogador de bola, disse à velha mãe e aos quatorze irmãos. Sabia-se no meio que era um jogador habilidoso e com algum futuro não fossem as más companhias. Outro dia mesmo, o delegado, calça curta, chamou-o para uma conversa sobre possível envolvimento dele com uns negócios malfeitos, que seria, à boca pequena, o tráfico de drogas. Melhor mesmo que fosse respirar outros ares, pensaram todos. Menos a mãe, que esperava uma vaga, havia dezoito semanas, no hospital do município, na Rua do Hospital, para ser internada, com palpitações no coração. Soube-se posteriormente que o rapaz jogava num grande clube da capital, havia feito alguns gols e gozava de boa fama, embora a cabeça continuasse sem juízo. Era o que diziam dele. A mãe já havia morrido de tanto esperar. Não, não pelo filho, que não voltaria jamais, mas pela vaga no hospital. 

 — Fala, mãe! — Bizuca estava impaciente. — Por que o nome dele é Perna de Pau?

 Saiu uma notícia no jornal de que o jogador Jereba de Zé Rufino, da cidade de Três Ruas, foi dispensado do clube em que jogava. Por quê? Não estava claro. Havia chegado atrasado a um treino, e o presidente o dispensou. Não foi bem assim. Por motivos óbvios, os contratantes amenizaram a informação para não atrapalhar ainda mais a carreira promissora daquele atleta tresruense. Na verdade, ele não perdera o mau vezo de usar certas porcarias, pior: vendê-las aos companheiros. O técnico do time descobriu e o denunciou à presidência. Envergonhado, Jereba não voltou para casa, em Três Ruas; preferiu gastar na capital as economias que ainda lhe sobravam. Poucas. Não tardou, ele as desperdiçou nas mesas de biriba e bebedeiras. Perdeu tudo, embora para os conterrâneos alardeasse que era rico e possuidor de muitos bens. Para os irmãos, nunca chegou um vintém. Uma noite, voltando para casa, no carro emprestado de um amigo, capotou e teve a perna esquerda amputada, justamente a perna com a qual chutava tão bem.

 “Não tinha dinheiro para colocar uma prótese. Arranjaram-lhe uma perna de pau”.

 Bizuca ficou a espiar a mãe por baixo do olho, desconfiado, sem saber se acreditava na história ou não. Saiu para a rua. Os colegas de baba o esperavam. Observou que o portão principal do estádio Visgueirão estava aberto. Correu para espiar o que acontecia lá dentro. Viu, assombrado, um homem velho capengando no meio do gramado. Usava uma perna de pau, tinha os cabelos esbranquiçados, a barba medonha, os olhos fundos, a tez de coruja. Vestia-se modestamente.

 Bizuca aproximou-se, a bola de meia debaixo do braço. Chegou o mais próximo que o medo lhe permitiu e disse numa voz penosa:

 — O senhor é o grande jogador Perna de Pau?

 O homem velho virou-se para ele, apoiou-se mais confortadamente sobre a perna boa e disse:

 — Não, meu filho. Sou o burro Perna de Pau.

 O menino ficou sem entender. Chutou a bola para qualquer lugar:

 — Mas, eu pensei que...

 O homem olhou para as arquibancadas vazias:

 — Meu filho, quem não ouve o que os pais têm a dizer acaba como eu.

 — Como assim, senhor?

 — Estudar, meu filho, estudar é o melhor caminho, como me dizia minha saudosa mãe, e eu não gostava de ouvir.

 — Mas, o senhor não ficou rico e famoso?

 — Fiquei miserável e esquecido. Nem família tenho mais.

 — A culpa foi da bola?

 — Não. A culpa foi de gente como esse Visgueira, de Três Ruas, que, por conta da ambição política, mantém o povo preso num templo inútil como este onde estamos dentro, que para nada mais serve senão disseminar ilusões. Daqui, leva a sua gente para o hospital, depois para o cemitério. 

 — Então o senhor não me aconselha a ser um jogador de futebol?

 — O que diz sua mãe?

 — Que eu posso ser tudo na vida, contanto que estude para isso.

 — A sua mãe é sábia, como foi a minha mãe, como todas as mães o são.

 O menino abaixou a cabeça e, quando voltou a si, o homem não estava mais lá. Voltou para casa. No dia seguinte, foi para a escola com toda a disposição e alegria. Revelou a um colega que ia ser jogador de futebol depois que se formasse.

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