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O Patinho de Uma Asa Só

Escritor Achel Tinôco 

Um estalido foi ouvido pela mamãe Paty, que se levantou, sacudiu as penas, fez do pescoço um grande arco, de modo que, com a ponta do bico voltado para baixo, arrumasse os ovos. Juntou-os mais, como para permanecerem aquecidos. Deitou-se sobre eles novamente e fechou os olhos como se sesteasse. 

Um a um, os patinhos foram quebrando a casca dos ovos: o bico, a cabeça, o pescoço, o tronco inteiro... Pularam para fora do ninho, todos amarelos ainda, dispostos, fortes e bem nascidos. Contou-os, finalmente, a mãe: doze. Fez um quen, quen, quen, quen para que todos se juntassem atrás dela, a caminho da lagoa, à meia distância do paiol, onde fora ajeitado o ninho. Paty seguia à frente, rebolosa, majestosa, orgulhosa. A dúzia de patinhos ia atrás, instintivamente: uns que tropeçavam, pisavam os outros, corriam, paravam. 

Chegaram à margem da lagoa. 

Os patinhos esparramaram-se: boa parte bicava talinhos de capim, uns invertebrados desprevenidos; outra olhava em redor, como se o mundo ainda não lhes fosse conhecido. O céu tinha contornos azuis com pintinhas amarelas, qual fossem irmãs ou parecidas com os patinhos cá de baixo. Tinham muito que ver. 

A mamãe Paty olhou-os, contou-os novamente — doze —, e adiantou-se a passos medidos para precipitar-se na água. Os patinhos a seguiam pegados nas patas. Ela mergulhou graciosa e emergiu lá adiante; eles entraram desordenadamente pelas águas escuras a nadar em volta da mãe. Uns enfiavam o pescoço para dentro da água morna, outros batiam as asinhas, molhando-as. Ainda havia aqueles que se sacudiam e deslizavam na superfície como se tivessem rodinhas em vez de patas. 

Lá para depois, a mamãe Paty enfiou, uma vez mais, a cabeça para dentro d’água. Não demorou um piado e trouxe agarrada ao bico um peixinho miúdo, que a ela não importava a espécie nem o nome. Não confirmou aos filhotes; queria apenas ensinar-lhes as primeiras lições. De repente, pareceu-lhe ouvir distante um quen, quen infantil. Olhou para um lado, para o outro, levantou a cabeça, aprumou os ouvidos. Ora, os filhotes estavam todos à sua volta... Estavam? Tornou a contá-los: onze. Onze? Correu em disparada por sobre as águas a ponto de quase voar e voltou à margem para ver qual dos meninos ficara para trás e por quê. Encontrou o caçula, cujo nome, naquele exato momento, ela deu-lhe de batismo: Extraviado. Estava escondido atrás de uma moita de piri com o bico enterrado na lama e os olhos mareados. Chegou-se para junto dele:

 — Que foi, meu filho, por que não seguiu os seus irmãos ao primeiro banho? —  perguntou.

 — Não posso, mamãe, você não está vendo...?

 — Vendo o quê, menino? — já trazia no bico certa impaciência.

 Extraviado não conseguiu se explicar:

 — Ora, mamãe, não sou como os outros...

 — Meu querido, não há problema algum com você. É um belo rapazinho, igual aos seus irmãos. Em breve, não haverá uma patinha nas redondezas em cujas asas não poderá repousar as patas por cima.

 Extraviado levantou o pescoço da terra e se encaminhou, meio de banda, para debaixo das asas da mãe. Foi aí que ela o viu em toda a sua plenitude e notou a deformidade:

 — Meu Deus! — ficou apavorada.

 Ele não tinha uma asa. A direita. 

 A mãe aconchegou-o sob as penas e ficou a pensar na vida do filho: ele não poderia fazer as coisas que os irmãos certamente fariam. Coisas simples como nadar na lagoa e pescar. Como um pato viveria sem essas habilidades? O mundo não era feito para patos sem asas. Melhor que fosse cego: que lhe faltasse uma pata, chegou a pensar. Não. Melhor que fosse saudável como os irmãos. Desfez-se das lágrimas, fez quen, quen para que os outros saíssem de dentro da lagoa e levou-os para casa. Não tornou a contá-los; estavam todos atrás dela, tinha certeza, instinto de mãe. Não nomeou outro patinho. Para ela somente Extraviado deveria ter nome. Pensava que seria uma forma de homenageá-lo pelo fato de ele ser deficiente. Tal honraria, portanto, caber-lhe-ia em detrimento dos outros, saudáveis e sem problemas aparentes. 

Cobriu Extraviado de mimos e cuidados, como se ele fosse já inválido completo, e não apenas impossibilitado de nadar. Por enquanto. Os irmãozinhos começaram a sentir ciúmes de Extraviado. Não entendiam por que somente ele tinha nome e precisava de tantos cuidados e atenção. Na verdade, não era inválido, tão somente tinha alguns movimentos do corpo prejudicados, mas, nas peraltices de criança, era o mais levado. Os irmãos, zangados com a proteção que mamãe Paty dispensava ao caçula, começou a chamá-lo de Asa Negra. Na escola, os colegas não deixavam por menos. Chamavam-no de Asa Caída. Não raro, o patinho chegava em casa chorando, não suportava as brincadeiras dos colegas, que considerava de mau gosto e injustificáveis, e os tantos apelidos infames que lhe davam: Asa de Urubu, Asa Só, Asa Cotó, e por aí em diante. 

 — Mamãe, não quero ir mais pra escola — disse amuado.

 Paty já sabia os motivos, mas procurava, a todo custo, animá-lo:

 — Meu filho, não dê importância às brincadeiras. Coisas de crianças!

 O menino, então, contou-lhe o que lhe dissera a professora Gansa Maria:

 — Explicou-me que a isso dá-se o nome de bullying. É uma coisa muito feia de se fazer com um colega. Mas os colegas não lhe deram atenção e continuam a me desfazer.

 Mamãe Paty olhou-o penalizada: 

 — O que você disse a ela? — perguntou como para tentar entendê-lo melhor.

 — Que Deus só existe para alguns...

 Paty estremeceu. 

 No dia seguinte, logo cedo, Extraviado saiu de casa sem dizer destino. Saiu de banda pela encosta da cerca e dirigiu-se à beira da lagoa. O sol ainda espreguiçava-se atrás das matas, uma brisa suave corria no entorno da lagoa. Chegou à beira d’água e ficou a contemplar o espelho. Assustou-se ao ver-se grande assim: as penas bem definidas e de uma cor acinzentada, as patas fortes, as membranas largas entre os dedos, o olhar avermelhado. Estava gordo, vistoso, bonito. Enfiou o pescoço dentro d’água e viu passando lá abaixo alguns peixes. Não fez menção de pegá-los, não sabia pescar, nunca tivera interesse. Mas tinha em mente uma vontade incontrolável de fazer algo que chamasse atenção de toda a gente e toda a pataria da região. 

Pensou na mamãe Paty, sempre tão conformada, atenciosa. 

 Na cozinha, Paty preparava umas piabinhas fritas para dar de comer aos meninos. Ia lá, vinha cá, entrava e saía. Não viu Extraviado. Gritou-o, fez quen, quen, quen, quen. Nada. Puxou as penas do rabo dos dois mais velhos, que teriam mangado dele na noite passada, e saiu em disparada pelo caminho da lagoa. Os onze maiores seguiram-na atrás. De longe, viu-o no meio da lagoa, subindo e descendo, puxando pelo bico a professora Gansa Maria. Levou uma pata ao bico:

 — Deus do céu, meu filho!

 Na borda, toda a classe assistia impassível à cena. 

 Extraviado, trouxe-a para a margem. Tinha engolido alguns goles d’água. Em poucos minutos, estaria recuperada.

 Quando ele chegou à beira da lagoa, indagorinha, avistou, do outro lado, a professora e todos os colegas navegando pela margem. Acenou com a asa que tinha; não o viram. A professora foi a primeira a pular nas águas, para mostrar aos alunos como deveriam nadar e pescar. Nem bem deu as primeiras patadas, foi acometida de fortes câimbras, que a impossibilitava de continuar nadando. Pior: estava longe da margem e não tinha patas para nadar de volta. Gritou:

— Socorro!

Nenhum dos alunos ousou aventurar-se nas águas para salvá-la. O medo impusera-lhes às patas um modo de paralisia que não os deixou atirar-se para salvar a pró. Ficaram como petrificados à beira da lagoa esperando, decerto, que caísse do céu algum anjo para salvá-la. Não desconfiavam de que “ele” estava bem ali, do outro lado.

Extraviado não pensou duas vezes; sequer lembrou-se de que nunca havia nadado antes. Ao ver a professora Gansa Maria afogando-se, atirou-se nas águas. Bateu as patas com toda força, mantendo a cabeça para fora, e deslizou de banda até chegar à pró, que já desfalecia. Trouxe-a com muito esforço agarrada pelo bico. 

 Os colegas, bestificados, envergonhados, aplaudiram-no exaustivamente. Era um herói. Uma patinha beijou-o na cabeça, chamando-o de Asa Bendita:

 — Meu pato-rei — completou. 

 Gansa Maria disse comovida:

 — Estão vendo? Ser diferente não quer dizer que somos incapazes. — E arrematou:  — Agora quero saber: quem entendeu o significado de bullying? 

 Entreolharam-se em silêncio. Nada mais do que isso:

 — Quen, quen!

 Mamãe Paty não conteve a emoção:

 — Este é o meu filho.

 Extraviado bateu sua asa única com orgulho.

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