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O Beija- Flor Que Não Sabia Voar


Do livro com o mesmo nome do escritor Achel Tinoco

A mamãe beija-flor levou para fora do ninho o pequeno Coli, para ensiná-lo a voar. Empoleirou-o na borda do ninho e foi lhe explicando como deveria bater as asinhas, sincronizar os movimentos, a velocidade exata, a magia, até alçar voo. Ele sacudiu-se todo, mas não saiu do lugar.

Dona Beja Rubricauda coçou, com a pontinha da unha, o papo amarronzado. Ficou a procurar uma explicação para a negativa da natureza; entristeceu-se. Afinal, como poderia um beija-flor não saber voar? A preocupação maior era com o futuro: como um beija-flor sobreviveria sem poder sobrevoar os campos para buscar alimentos? Como conquistaria uma família tendo as asas paralisadas? Não bastasse, ficaria vulnerável. Todo e qualquer predador achar-se-ia no direito de capturá-lo. 

Mas era fato: o seu filhote não conseguia voar. Até que ele esforçou-se: bateu as asinhas dez vezes num minuto — a mãe batia oitenta vezes num segundo. Se não conseguia se sustentar no ar, como poderia sugar o néctar das flores, que consistia em noventa por cento de sua alimentação? 

Ah, preocupação sem tamanho dessa mãe! 

Com o seu bico alongado e a língua bifurcada, ela tentou novamente mostrar ao menino como ele deveria extrair o néctar de uma flor de sálvia, abaixo quatro metros de onde estava. Mergulhou num voo reto, pairou à frente da planta e enfiou o bico alongado no âmago da flor. Tirou lá de dentro algumas gotinhas e as depositou no bico aberto do filhote, que as sorveu de uma vez. 

Coli absorveu o ensinamento, esforçou-se, mas, em vez de voar, pulou lá de cima e precipitou-se cá embaixo. Não tinha natureza de beija-flor. Não podia voar. Dona Beja cobriu os olhos com as asinhas esverdeadas e translúcidas: 

“Que será deste meu filho?”

Coli levantou-se como pôde. Sacudiu as asas, limpou as penas desarrumadas e sorriu. Para ele, a cena não deixou de ser engraçada, bem poderia fazer parte de alguma historinha infantil que pretendia contar... Andava ensaiando alguns pequenos escritos às escondidas.  

Dona Beja pegou-o pelo bico e o levou de volta ao ninho, que ficava sobre uma árvore de figo, em meio a um bosque. Saiu por um minuto e voltou em seguida trazendo mais néctar. Talvez ele não tivesse se alimentado direito, estivesse fraco. Alimentou-o, cobriu-o com umas penas soltas e acomodou-o sob as suas asas de mãe para aquecê-lo. A noite já se fazia presente. Nada como uma nova manhã para se ter com outras lições.

Cedinho, ela saiu de casa para caçar. Voltou com o bico cheio. Encontrou Coli já acordado, ainda se espreguiçando. Depois de escovar o bico, ele ficou a admirar-se numa posição de pensador. Ela fez tititi, e ele abriu o bico para receber o alimento: mosquinhas in natura. Ele sugou-as com gulodice de dentro do bico da mãe e engoliu-as inteiras. Ficou satisfeito. Virou-se para o outro lado e tirou um ronco. Depois voltou ao afazer que já tinha começado quando a mãe o interrompeu para dar-lhe as mosquinhas que acabara de caçar. 

De fato, Coli havia crescido bastante: era agora um rapagão de quase 12 centímetros e 20 gramas de peso. Estava na hora de matriculá-lo numa escola. Dona Beja achava de suma importância a educação dos filhos. O segundo, Humming, estava alfabetizado. Ainda que não fosse um aluno brilhante, preocupava-se mais com o brilho das plumas do que com as folhas dos livros. 

Havia uma escola no bosque que servia a todos os filhos beija-flores, chamada Esmeralda de Gould. Coli encantou-se com o mundo estudantil, qual se sonhasse com ele desde a meninice: um mundo de conhecimentos. Não custou a fazer amizade com os coleguinhas, principalmente um da família Chlorostilbon lucidus, chamado Verdinho-do-bico-vermelho, mas, para simplificar, chamava-o simplesmente de Verdinho. Era um rapazinho simpático, que gostava muito de estudar, o que fez Coli tomar gosto ainda mais pelas letras e, consequentemente, pela leitura. 

Não parou mais de ler.

A mãe, Dona Beja, chamou o filho mais velho e perguntou o que tanto lia Coli. Ela não queria ser enxerida, por isso achou melhor perguntar ao primogênito. Este balançou a longa cauda em forma de tesoura, pigarreou, foi lá, veio cá, avistou com sua visão apurada uma formiguinha caminhando pela beira do rio, desconversou e disse à mãe que precisava sair para sugar o néctar de um cipó-de-são-joão.

— Menino, por quem me tomas? — perguntou-lhe Dona Beja no seu jeitão de madrasta. — Vamos, vamos, diga logo o que está acontecendo?

— É... bem, mãe, o Coli anda lendo umas historinhas infantis!...

— E daí...?

— Quer escrever um livro.

— Isso não é bom? — perguntou desdenhosa.

Humming deu de ombros, esparramou a cauda, completou:

— Anda escrevendo às escondidas, com medo de a senhora não aprovar.

Dona Beja levantou voo, subiu o mais alto que pôde, pousou no olho do pé de um abacateiro. Pensou. Depois voltou depressa, deu voltas ao redor do ninho e, por último, pousou numa galha fina ao redor da casa, deveras preocupada: 

“Então é isso!”

 Não se interporia às escolhas de um filho, muito menos de um que pretendia ser escritor, ainda que o caminho para esses artistas quase sempre fosse cheio de pedras e temporais. Nenhuma arte poderia ser mais nobre e difícil também. Mas não deixava de ser engraçado: um filho que não sabia bater as próprias asas para voar e agora queria voar nas asas imaginativas da literatura. 

 Foi conversar com o filho:

 — Meu Colizinho, que tanto você anda lendo? Conte a sua mãe.

 — Umas historinhas, mãe, só isso.

 — Se é só isso, por que sua mãe não pode ver?

 — Ah, mãe, coisa minha.

 Como ele não voava, a mãe alimentava-o, levava-o à escola, ao rio, ao jardim, ao parque. Mas, agora, como levá-lo ao mundo mágico das letras se ela não o conhecia? 

 — Soube que você anda escrevendo algumas coisas!

 — Nada demais — limitou-se a dizer.

 — Meu filho, qualquer profissão que você escolher, vai ter de batalhar muito se quiser galgar o sucesso. Portanto, se você pretende mesmo seguir essa carreira, vá em frente. — E acrescentou: — Seja como for, saiba que eu vou estar do seu lado. Ficarei muito orgulhosa se você se tornar um escritor, mesmo que não seja dos grandes. Mas, para mim, você será sempre o maior de todos.

 O menino calou-se pensativo, como se já se visse lá adiante entre tantos livros publicados. Ou nenhum. Tremeu as asinhas. 

Dona Beja afastou-se. Voou. 

 Coli voltou à leitura. De alguma forma, as palavras da mãe fê-lo sentir-se mais confiante. Na escola, começou a rabiscar versinhos nos cadernos das coleguinhas. Elas ficavam encantadas com o seu jeito e a sua habilidade com as palavras. Algumas andavam arriando as asinhas para ele, mas, como não sabia voar, ficava nas piscadelas de olhos, nada além. Enquanto isso, nas páginas dos livros, voava e voava como se o mundo não tivesse horizontes nem limites. 

 Um sonhador, a mãe dizia dele, mas o admirava pela labuta de escrever. E ele escrevia, e lia, e escrevia, até que um dia anunciou que tinha um livrinho pronto. Um livrinho para crianças. A mãe deu pulos, voos rasantes; o irmão fez troça, disse que agora ele voava mais alto do que todos da espécie. 

 Juntou o que tinha escrito numas folhas de bananeira, enrolou num rolo e mandou o livro para trinta e duas editoras. O tempo passou, oito meses, e ainda nem uma havia mandado uma resposta. A decepção podia-lhe ser distinguida nos olhinhos a qualquer distância. Sem dinheiro para bancar os custos de uma publicação independente, foi ao quintal do vizinho arriscar a sorte num bilhete de loteria. Na fila, viu uma pequena fêmea de beija-flor de bico grande, tão grande que chegou a pensar que ela estivesse muita zangada. 

Olhou duas vezes e tirou os olhos, achou-a tão bonita e redondinha. Se não se apresentasse, jamais a encontraria novamente. Encheu o peito de ar e aproximou-se para conversar. Não tinha a aptidão narcisista de Humming, mas ele também não tinha a sua aptidão com as palavras, oxente!

 A menina chamava-se Taty e era uma estrelinha-ametista. Ele enamorou-se dela. Gostou tanto da conversa, que a convidou a uma porção de néctar sob uma roseira ao lado. Taty logo percebeu as suas dificuldades de pouso, o andar desajeitado, as asas mortas. Não fez caso, falou de poesia. Coli encantou-se, fez todos os floreios, chegou a esquecer-se de sua necessidade especial. Não parecia importante. Os livros eram importantes; podia voar pelas suas páginas com desenvoltura. Quiçá ela pudesse acompanhá-lo. 

 Noutras conversas, Taty disse-lhe que ouvira falar na escola de uma editora pequena chamada Colibri, que fazia ótimos trabalhos e recebia originais de escritores iniciantes. Coli encheu-se de esperança outra vez. Viu-se imediatamente publicando seu livrinho. Ameaçou bater as asas, mas caiu de banda. Ela riu-se. Ele correu para encontrar um mensageiro a tempo de levar o rolo de folhas de bananeira com os seus escritos à Colibri. Restava-lhe esperar.

 Dias depois o editor de papo branco mandou chamá-lo. Disse-lhe sem preâmbulos que havia gostado do livro e que poderia editá-lo, edição pequena, não mais que 500 exemplares. Ora, está bem demais, o menino ficou mais verde. Contudo, precisava consertar alguns errinhos, umas vírgulas, nada que depreciasse a obra. 

 Nesse meio tempo, Coli comunicou a Dona Beja que traria Taty para morar com ele. Uma alegria para ela; afinal, o filho teria alguém que cuidasse dele e o incentivasse, amasse-o do jeito que era. Quem sabe, em breve, netinhos andariam a voar por ali tudo.

 O livro de Coli chegou três meses depois. Ele foi abrindo o pacote como quem abria a própria história: com expectativa e incerteza. Os seus olhos brilharam intensamente ao ver a capa com a sua imagem refletida, sob letras garrafais onde se destacava o título: O BEIJA-FLOR QUE NÃO SABIA VOAR. 

Abaixo, estava impresso: 

“A leitura protege o cérebro, aquece o coração e liberta a alma.” 

O seu nome artístico, em letras menores: Coli Tobago — alusão à região de onde era originário. 

Dedicou o primeiro exemplar à mãe, que encheu os olhos de lágrimas, depois a Taty e ao irmão Humming. 

Coli espalhou sua arte e, embora não soubesse voar com as próprias asas, voou mais alto do que todos os outros das trezentas e trinta e duas espécies conhecidas.

A noite de autógrafos foi um acontecimento no bosque.

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