Do livro "O beija-flor que não sabia voar," do escritor Achel Tinoco
Marina não gostava de palhaço. Mas adorava o circo.
Morava na pequena Circolândia, encostada na Serra do Sincorá, na Chapada Diamantina. O rio passava atrás da casa. Ela gostava de ficar na janela da cozinha olhando as borboletas amarelas, as lavandeiras que corriam na beira d’água caçando mosquitinhos e os mastins-pescadores que mergulhavam para pescar piabinhas.
Uma vez por ano, todos os circos do mundo lá se reuniam para discutir sobre novas técnicas circenses. E a cidadezinha se transformava numa grande festa: era bicho que corria solto pelas ruas, malabaristas aos pulos, palhaços por todo canto.
Um menino maluco soprava um bastão com querosene e despejava pelos ares labaredas de fogo. Outro tinha a cara de monstro, mas, tão bonzinho que era, não metia medo às crianças. Marina sorriu acanhada quando ele lhe acarinhou os cabelos aloirados. Também não sentiu medo.
Não temeu o leão, achou graça do macaco, aplaudiu os malabaristas. No entanto, quando o palhaço Quero-Quero apontou na esquina com sua roupa folgada e colorida, o nariz vermelho, o rosto pintado, o cabelo de preguiça, e abriu os braços para pegá-la ao colo, ela se retraiu, escondeu-se atrás da saia da mãe, tremeu os lábios, os olhos faiscaram.
Amara abraçou-a:
— Que foi, minha filha?
A menina esfregou os olhos marejados e levou o bico à boca. Apesar da idade, ainda usava bico, principalmente em ocasiões que se sentisse ameaçada ou amedrontada, como estava agora.
Quero-Quero deu um beijo na testa de Amara e adiantou o passo, fazendo estripulias, contando histórias, convidando o povo. Às cinco da tarde, haveria matinê:
— Hoje tem palhaço? Tem, sim, senhor!
No centro do picadeiro, o apresentador espalhafatoso, com uma gola de camisa que cabia dentro mais dez, anunciou aos berros o início do espetáculo:
— Senhoras e senhores, vai começar a festa. Aqui estão os melhores palhaços do mundo, os melhores malabaristas do mundo, os melhores equilibristas do mundo! — ele disse exageradamente. — Afinal, temos reunidos nesta linda cidadezinha os melhores circos do mundo. E lembrou-se: — Ah, e nunca vi plateia mais bela!
Das pequenas arquibancadas de tábuas, apinhadas de crianças, surgiram palmas entusiasmadas. No meio delas, Marina se agitava, batia palmas, sorria. Uma menina que rodopiava lá no alto do teto de lona, presa pelos cabelos a uma corda longa de algodão, deixou-a de boca aberta. Também esbugalhou os olhos de oliva quando entraram os ursos amestrados, os macacos tão gaiatos, os pôneis corredores.
Mas, quando Quero-Quero, outra vez, pulou à frente e abriu os braços para recebê-la, ela se recusou e chorou.
— É o papai, minha filha! — disse-lhe Amara.
Marina não o reconhecia:
— Não quero ele!
O pai se chamava Osvaldo Meira, era um homem de meia-altura, meia idade, rechonchudo, o bigode ralo, a fala mansa, risonho. Não podia ser aquele palhaço, conforme devia pensar a pequena Marina. O seu pai não era aquele palhaço feio.
Desde antes de a filha nascer, Osvaldo já se aventurava pelas estradas acompanhando companhias circenses. Conhecera Amara, ainda uma adolescente, ali mesmo na Circolândia, num congresso anual de palhaços. Sem tempo para mais delongas, casaram-se imediatamente tão logo o amor foi confirmado entre ambos. Ela o acompanhou até que a barriga não lhe permitisse mais. Ficou em casa a esperá-lo, pelo menos uma vez ao mês.
Marina nasceu, e ele não estava presente. Viu-a vinte dias depois. O trabalho no Circo da Gente não lhe deixava de férias dentro de casa por mais de uma semana. Longe das vistas do pai, a menina cresceu rápido. Estava para comemorar o terceiro aniversário.
Quando o via partir, antes de se caracterizar de Quero-Quero, sempre acompanhado por algum palhaço, Marina olhava pela janela da sala e tinha a nítida impressão de que o pai havia sido mais uma vez levado pelo palhaço. Por isso, ela não gostava de palhaço. Muito menos daquele Quero-Quero, que, toda vez que a via, queria pegá-la ao colo. Além disso, tinha medo de que ele também levasse a sua mãe para longe.
Desta vez, por causa do encontro, o pai passaria uma semana dentro de casa. Marina não se desgrudava dele. Falava tanto, conversava, brincava, abraçava, dormia agarrada a ele.
Uma manhã, ela acordou muito cedo e não o viu na cama ao lado da mãe. Chorou. Mas, quando o viu entrar, em seguida, pela porta da rua com um saco de pães nas mãos, jogou-se sobre ele e se enrolou ao seu pescoço como se nunca mais o fosse deixar sair.
No fim da tarde, quando o pai foi tomar banho, para depois se preparar para ir ao circo, para nova apresentação, ela o seguiu, tomou banho junto com ele, fez um grande monte de espuma com sabão e lambuzou o rosto do pai. Em seguida, saíram enrolados em grandes toalhas brancas de dentro do boxe e se postaram diante do espelho. Enquanto Osvaldo cobria o rosto de espuma para se barbear, Marina se pintava com o batom e o ruge da mãe.
Vendo aquele quadro infantil, Osvaldo começou a compor o seu personagem para brincar com ela. Não demorou a se transformar no Quero-Quero. Marina largou o batom sobre a bancada de mármore da pia e deu dois passos para trás, com grande surpresa:
— Papai!
Compreendeu: ele não era o monstro feio que o levara para longe de casa.
Amara entrou no banheiro ao mesmo instante e os três se abraçaram risonhos, admirados pelo espelho.
Foram pelas ruas a caminho do circo.
Marina se esqueceu do bico. Estava duplamente orgulhosa.
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